Perto do Coração Selvagem - Clarice Lispector
A CONSTRUÇÃO DO SADISMO EM JOANA
OBJETIVO:
Tem o objetivo de demonstrar como se desenvolve o sadismo - representação do mal - em Joana, personagem protagonista do romance “Perto do Coração Selvagem” de Clarice Lispector.
CLARICE:
O 'Perto do coração selvagem‘ (1944) é o primeiro romance de Clarice Lispector, e desde logo percebeu-se o esforço em querer atingir as camadas mais profundas da consciência humana, num mergulho psicológico raras vezes tentado em nossa literatura.
O Em sua obra interessa a repercussão que os fatos tem sobre a consciência das personagens. É uma literatura introspectiva, que sonda o interior do ser humano para revelar suas dúvidas e inquietações. Importam as reflexões que nos levam para "perto do selvagem coração da vida"
SOBRE A OBRA:
A vida de Joana é contada desde a infância até a idade adulta através de uma fusão temporal entre o presente e o passado. A infância junto ao pai, a mudança para a casa da tia, a ida para o internato, a descoberta da puberdade, o professor ensinando-lhe a viver, o casamento com Otávio. Todos estes fatos passam pela narrativa, mas o que fica em primeiro plano é a geografia interior de Joana. Ela parece estar sempre em busca de uma revelação. Inquieta, analisa instante por instante, entrega-se àquilo que não compreende, sem receio de romper com tudo o que aprendeu e inaugurar-se numa nova vida. Ela se faz muitas perguntas, mas nunca encontra a resposta.
A citação mostra muito do perfil de Joana, demonstrando toda sua força e determinação:
“Sobretudo um dia virá em que todo meu movimento será criação, nascimento, eu romperei todos os nãos que existem dentro de mim, provarei a mim mesma que nada há a temer, (...) eu serei forte como a alma de um animal e quando eu falar serão palavras não pensadas e lentas, não levemente sentidas, não cheias de vontade de humanidade, não o passado corroendo o futuro! O que eu disser soará fatal e inteiro!”. (Lispector, 1998, pg. 201)
A CONSTRUÇÃO DO SADISMO EM JOANA:
O Sadismo: “ter prazer no sofrimento alheio.”. Em Perto do Coração Selvagem, o Sadismo é entendido como um processo de humanização, no qual quando se reconhece essa destruição por meio da maldade humaniza-se, ou seja: o mal faz parte da vida.
O “A expressividade do mal sempre habitou a literatura. (...). Dos seus primórdios à modernidade, o mal sempre encontrou palavras que o representassem.” (ROSENBAUM, 2006).
O “ Minha maldade vem do mau acomodamento da alma no corpo. Ela é apertada, falta-lhe espaço interior.” In: UM SOPRO DE VIDA. A expressão do mal é encontrada em varias outras obras de Clarice Lispector, a exemplo de “Um Sopro de Vida”.
O A intencionalidade de Joana é a busca da liberdade e do coração selvagem da vida.
Obs.: Esse SELVAGEM é entendido como antagonismo com o mundo, ou seja oposição e incompatibilidade de ideias, etc.
O O sadismo de Joana é apresentado logo no primeiro capítulo, que é apresentado sua infância, onde fala das galinhas, numa visão de ingenuidade e violência:
“Encostando a testa na vidraça brilhante e fria olhava para o quintal do vizinho, para o grande mundo das galinhas-que-não-sabiam-que-iam-morrer. E podia sentir como se estivesse bem próxima de seu nariz a terra quente, socada, tão cheirosa e seca, onde bem sabia, bem sadia uma ou outra minhoca se espreguiçava antes de ser comida pela galinha que as pessoas iam comer.(LISPECTOR, 1998, p. 13)
Esse olhar de joana que capta o mundo na sua dimensão destrutiva inexorável deixa entrever muito do perfil sádico da personagem. Ela é sensível a essas relações e tem prazer por tal visão.
O Em Joana adulta essa visão se transforma em compaixão e solidariedade:
“Quantas vezes não dera uma gorjeta exagerada ao garçom só porque se lembrara de que ele ia morrer e não o sabia.” (LISPECTOR, 1998, p. 111.)
Mas como se configura essa mudança?
Através de elementos como:
O Criança (brincadeira com as bonecas = MORTE): “Já vestira a boneca, já a despira, imaginara-a indo a uma festa onde brilhava entre todas as outras filhas. Um carro azul atravessava o corpo de Arlete, matava-a.”(págs.. 14-15)
Segundo ROSENBAUM, A morte da boneca é associada a uma “vingança” da mãe que morrera e que a deixou sozinha.
O Frustrações de Joana (O Pai = a falta de afetividade):
“― Papai, que é que eu faço?
―Vá estudar.
― Já estudei.(...)
― Então não amole.” (p. 15)
“Um ovinho, é isso, um ovinho vivo. O que vai ser de Joana?” (p. 17)
O GOSTO DO MAL:
O Em “O dia de Joana”- primeiro capítulo a tratar da vida adulta – observamos as transformações às quais Joana passou, iniciando com: “A certeza de que dou para o mal” (p.18). E continuando:
“O que seria aquela sensação de força contida, pronta para rebentar em violência, aquela sede de empregá-la de olhos fechados, inteira, com a segurança irrefletida de uma fera? (...). Nem o prazer me daria tanto prazer quanto o mal, (...). Sim, ela sentia dentro de si um animal perfeito. Repugnava-lhe deixar um dia esse animal solto.” (p.18)
OBS.: A certeza para o mal vem das concepções intelectuais que faz acerca da vida, eximindo-se de praticar a maldade.
O O “gosto do mal” é mais declarado e imaginado do que executado, embora sejam poucos, mas são densos os momentos que o sadismo de Joana externaliza-se:
O O roubo do livro: roubo este que a leva para o internato e recebe o nome de víbora pela tia:
“― Eu roubei o livro, não é isso? (...)
― Por que então...?
― Eu posso. (...)
― Sim, roubei porque quis. Só roubarei quando quiser. Não faz mal nenhum.” (págs. 49-50);
O O livro na nuca do velho – que além de tudo mentiu dizendo que havia sido engano:
“Encarava-o ereta e fria, os olhos abertos, claros. Olhou para a mesa, procurou um instante, pegou num livro pequeno e grosso. No momento em que ele punha a mão no trinco, recebeu-o na nuca.”(p. 92);
O Quando diz a Lídia que terá o filho e só depois lhe devolverá Otávio: “Eu lhe darei Otávio, não agora, porém quando eu quiser. Eu terei um filho e depois lhe devolverei Otávio.” (p. 155);
O E no capítulo “A víbora”, onde Joana mente para Otávio sobre a descoberta da gravidez de Lídia:
“ Não... Talvez eu tenha razão, (...). Talvez não se pense em nada disto antes de ter um filho. Acende-se uma lâmpada bem forte, tudo fica claro e seguro, toma-se chá todas as tardes, borda-se, sobretudo uma lâmpada mais clara do que esta. E o filho vive. Isso é bem verdade...tanto que você não temeu pela vida do filho de Lídia... Nenhum músculo do rosto de Otávio se moveu, seus olhos não pestanejaram.” (p. 184)
O FIM DE JOANA:
O Ao final suspende o poder diabólico e se reconhece abandonada e só e reza para Deus:
“Deus meu eu vos espero, deus vinde a mim, deus, brotai no meu peito, eu não sou nada e a desgraça cai sobre minha cabeça e eu só sei usar palavras e as palavras são mentirosas e eu continuo a sofrer.” (LISPECTOR, 1998, p.198). Um fato importante a ser visto é que Deus aparece na aparece na obra por letras minúsculas, pela incredibilidade de Joana em Deus. Tanto que depois se arrepende e diz:
“Não, não, nenhum Deus, quero estar só.” (Idem, p.201)
Ao final existe a renovação: “e então nada impedirá meu caminho até a morte-sem-medo, de qualquer luta ou descanso me levantarei forte e bela como um cavalo novo”, tocando o núcleo selvagem da vida na obscuridade satânica: “só então viverei maior do que na infância, serei brutal e malfeita como uma pedra.” (LISPECTOR, 1998, págs. 202-201).
REFERÊNCIAS:
LISPECTOR, Clarice. Perto do coração selvagem. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.
Perto do coração selvagem. Disponível em: http://www.claricelispector.com.br/1943_Pertodocoracaoselvagem.aspx, acesso 24/11/2011.
ROSENBAUM, Yudith. Metamorfoses do mal: uma leitura de Clarice Lispector. 1ª ed. 1ª reimp. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, Fapesp, 2006. (Ensaios de Cultura, 17)
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